O amigo jornalista André Pereira está cumprindo uma tarefa história no Rio Grande do Sul. Sua atuação frente às comemorações dos 50 anos da Legalidade fez toda diferença, já que a paixão com que tratou o tema contagiou o povo que trabalha com comunicação. O resultado pode ser acompanhado nas telas, rádio e jornais.
25 de agosto: Ao lado de Brizola, deputados gaúchos começam a protagonizar a história
Por: André Pereira - MTB 4704 / Presidência
Edição: Antonio Oliveira - DRT RS 3403 Foto: Reprodução / Acervo Museu da Comunicação Hipólito José da Costa
Reunião entre Brizola e deputados no Casarão da Duque, na noite do dia 25
Primeiro dia, sexta-feira, 25 de agosto de 1961
Sem as virtudes de um orador emérito, o parlamentar se esmera na tribuna.
— Amanhã, o nosso Estado se engalanará...
Troveja o vozeirão em tom compassado do deputado Poty Medeiros, da União Democrática Nacional (UDN), que repete o advérbio lustroso, na retórica caprichada:
— ... nosso Estado engalanado e festivo irá receber o egrégio chefe da Nação...
E segue, pomposo como convém à linguagem excelencial dos deputados estaduais no Casarão da Duque, erguido ao lado do Palácio Piratini, na rua Duque de Caxias, e sede do Parlamento gaúcho até 1967 (quando, condenado pelo patrimônio, é evacuado para ser paciente de profundas reformas e transformações).
O silêncio regimental dos deputados que ouvem Poty com relativa atenção só é entrecortado, vez por outra, pelo estalar de passos no madeirame assoalhado do prédio construído em 1790 para ser a Junta da Administração e da Arrecadação da Fazenda Real (o dito Fisco), e que só em 1835 passou a abrigar o Parlamento nascituro no ano mesmo da Guerra dos Farrapos (1835/1845).
— Por ato exclusivo de Sua Excelência, iniciativa própria e original, o senhor Jânio Quadros transferirá, por dias, para Porto Alegre, a capital da República, na concepção de que a capital do país é a cidade onde se exerce sua administração... E seja bem vindo Sua Excelência. E seja feliz e fecunda sua estada em nossos pagos, por entre os aplausos de seus admiradores, ... Quero renovar os votos de que tenha feliz permanência na gleba gaúcha, ao aconchego carinhoso da boa gente rio-grandense que saúda um grande cidadão, um notável estadista, embora discordâncias que certos atos administrativos suscitaram, em respeitáveis e prestimosos circulos do pensamento político social do pais, certamente animados também de são patriotismo, provocaria receios de uma crise que poderá se agravar e de consequências imprevisíveis. Que Deus inspire os responsáveis pelo destino do Brasil, dentro da ordem, da legalidade, do tradicionalismo cristão e democrático de nossa Pátria. Que as nuvens borrascosas passem e retorne a tranquilidade ao espírito dos brasileiros.
O que teria levado o deputado Poty Medeiros a usar tão precocemente esta palavra legalidade? E que nuvens borrascosas veria ele naquele momento, no céu anil das vésperas da visita presidencial?
Era o dia 25 de agosto de 1961, cerca de 14h30 de uma úmida e fria sexta-feira cuja rotina modorrenta é quebrada apenas pela perspectiva de um Gre-Nal no fim de semana, no qual, aliás, a pelota sofrerá chute inicial desferido por nada menos que os sapatos que calçam os pés presidenciais. Sim, o presidente Jânio Quadros em pessoa estará no gramado instantes antes do match começar, para dar o tiro inaugural da peleja.
Cochichos entre militares de patente estrelada
Especula-se se neste último domingo agostino continuará chovendo - como ocorreu pela manhã nos festejos do Dia do Soldado, comemorado no Parque da Redenção, onde o governador do Estado, Leonel Brizola, permaneceu, galhardo e estóico sob chuvas e trovoadas, protegido em um palanque improvisado por uma comprida capa de gabardine, sem contudo deixar de perceber uma incomum troca de cochichos entre os militares de patente estrelada.
Sem que nosso orador saiba, o digníssimo cidadão e estadista presidente do Brasil, aludido pelo deputado Poty Medeiros, a esta hora da tarde não ocupa mais o cargo máximo da República que assumira apenas 206 dias antes, vencendo, de modo avassalador, com 5,6 milhões de votos (48%) liderando a coligação PTN/UDN, a disputa com o marechal Henrique Teixeira Lott (PSD/PTB) e Ademar de Barros (PSP), nas eleições em que o vice-presidente João Goulart (PTB/PSD) derrotara os competidores Milton Campos (da UDN) e Fernando Ferrari (MTR), empolgando 4,5 milhões de eleitores (41% do colégio sufragante).
Nesses idos sessentistas do século passado, em que as ligações telefônicas eram feitas em aparelhos municiados a magneto e em que praticamente se desconhecia a televisão e inimaginava-se a internet e o celular (para falar nos avanços tecnológicos mais rudimentares deste século), como se ia saber da renúncia que ocorria no centro do país na capital recente, a nova Brasilia imersa nos cerrados de Goiás?
Sem cogitar do turbilhão que se aproxima, falam pela ordem os deputados Affonso Anschau, Antônio Bresolin, Heitor Galant, Mariano Beck (que assume a presidência dos trabalhos em lugar de Egon Renner), Porcinio Pinto, Alfredo Hoffmeister, Cândido Norberto, Synval Guazzelli, Ary Delgado, José Vecchio, Naio Lopes, Paulo Brossard, Henrique Henkin, José Záchia e Siegfried Heuser.
Antes de se ingressar no período da Ordem do Dia, registram-se ainda as presenças de Athayde Pacheco, Carlos Santos, Domingos Spolidoro, Jairo Brum, Milton Dutra, Paulo Couto, Seno Ludwig, Sereno Chaise, Getulio Marcantonio, Mário Mondino, Adaury Filippi, Hippolito dos Santos, Antero Simões, Solano Borges, Milton Rosa, Heitor Campos, Antonino Fornari, Arlindo Kunzler, Gustavo Langsch, Euclides Kliemann, a primeira deputada estadual gaúcha, Suely de Oliveira e Hélio Carlomagno, o presidente da Casa, somando 49 deputados presentes naquele momento.
Dos 23 parlamentares do início da sessão, não haviam ocupado a tribuna ainda Alcides Costa, Adalmiro Moura, Onil Xavier, Epitácio Queiroz, Ney Ortiz Borges, Heitor Campos, Hélvio Jobim, Pio da Fontoura, Tasis Gonzales, Osmany Veras, Lauro Leitão, Vieira Marques,Luciano Machado e Romeu Scheibe. No total, 52 parlamentares tinham comparecido àquela sessão de uma sexta-feira pachorrenta que entrava em inesperada ebulição.
A sessão trata de variados assuntos com uma normalidade que vai se perdendo aos poucos soterrada por estranhos burburinhos que estalam e avolumam aqui e acolá. Antônio Bresolin clama pela volta dos clubes de tiro; Affonso Anschau reclama do baixo preço do quilo do suíno vivo; Cândido Norberto lamenta a falta de envio de informações do Executivo para uma CPI sobre as estradas de rodagem; José Alexandre Zachia grita contra os preços escorchantes cobrados no Estádio Olímpico para assistir o derby dominical entre Grêmio e Internacional.
Sobressalto, comunicação importante: a renúncia
O certo é que, no meio daquela tarde, em horário impreciso, quando aprecia-se o projeto de lei 157/61 que trata do pagamento de verbas assistenciais, percebe-se um sobressalto crescente repleto de interjeições entre os parlamentares que estão no plenário.
Aparentemente indiferente aos prenúncios de tumultos, o deputado Arthur Bacchini ainda solicita regime de urgência para tramitação do PL. O presidente prontamente coloca em votação. Mas então ergue-se, de um salto, um jovem deputado de cabelos escuros brilhantes de gumex . O galã radiofônico e pão das radionovelistas Cândido Norberto assoma à tribuna (como registrará a ata da 90ª Sessão Plenária da Assembleia) para fazer um comunicado estarrecedor, cuja sonora gravidade tem o poder de uma bomba explodindo no plenário:
— Senhor presidente, permita Vossa Excelência que, antes de encaminhar o expediente que está sob apreciação do plenário, eu colha a oportunidade para me antecipar num pronunciamento que valerá ou não, segundo tenha ou não ocorrido o fato que começa agora a chegar ao conhecimento de toda a Casa. Quero me referir, senhor presidente, à informação segundo a qual o senhor Jânio Quadros, presidente da República, teria renunciado à presidência da República. Se a notícia se confirmar, senhor presidente, eu posso assegurar a Vossa Excelência e a Casa que não preciso nem mesmo indagar as razões pelas quais o presidente da República teria tomado esta atitude...
A frase, com seu descuido redundante, permanece ecoando no vetusto salão.
— ... Jânio Quadros, presidente da República, teria renunciado à presidência da República...
O presidente da sessão atalha rapidamente:
— Vou interromper um minuto, Vossa Excelência. Dada a importância da informação, e para não ferir o Regimento, transformo a concessão da palavra à Vossa Excelência em Comunicação Importante por delegação do líder de sua bancada, a fim de não perturbar a tramitação do projeto que se encontrava sob apreciação do plenário. Vossa Excelência tem cinco minutos, em Comunicação Importante.
Cândido, 34 anos, retoma a palavra com a autoridade de jornalista vocacionado a noticiar seus pares:
— A mim parece muito fácil, mesmo à distância e diante de notícias inexatas, caracterizar o movimento que eventualmente possa explicar a decisão do presidente da República. Todo o país sabe que o senhor Jânio Quadros, face à orientação que imprimiu à sua política externa, vinha sendo objeto de duras críticas, e é de se imaginar, pelas informações também recebidas, que estava sendo vítima de pressão de conhecidos grupos que têm todo o interesse em fazer com que este País viva divorciado da realidade do mundo e que não exerça sua soberania em sua plenitude, mas que permaneça atrelado àqueles que conduzem, através de muitos anos, os interesses dominantes, em boa parte da terra, em muitos países do mundo.
Sessão permanente indefinidamente
Atordoados, mas sem muita informação concreta, os deputados se sucedem no púlpito da tribuna para condenar imagináveis razões da renúncia e, especialmente, atacar supostos motivadores da queda de Jânio.
A sessão prossegue, indecisa entre a tentativa de manter a formalidade da pauta habitual daquela sexta-feira e a perplexidade provocada pelas incriveis coincidências dos acontecimentos presidenciais que gera conversas paralelas e manifestos impulsivos na tribuna. É que justo no dia anterior, 24 de agosto, reverenciara-se outra renúncia famosa, a do presidente Getulio Vargas que, exatos sete anos antes, deixara a presidência e a vida, suicidando-se com tiro certeiro no peito.
— O Carlos Lacerda deve estar por trás da tragédia desta vez também - comenta um.
O deputado Mariano Beck, em nome da bancada do PTB, sobe à tribuna para lamentar o ocorrido e fazer o primeiro alerta contra a possibilidade de um golpe nas instituições. "Que a renúncia do presidente não seja prenúncio de dias sombrios para a nacionalidade", diz. E arremata:
— Neste instante, certamente os homens de bem, aqueles que desejam uma pátria livre e forte, devem ter sua atenção voltada para os acontecimentos a fim de impedir, senhores deputados, que volte o País para um regime que não seja o da legalidade e do direito".
Vale registrar que, pela segunda vez nesta sessão plenária, aparece, entoada pelo vernáculo parlamentar, a palavra legalidade?
Mariano Beck prossegue, em tom emocionado, requerendo ao presidente Carlomagno que a sessão plenária se alongue em caráter permanente indefinidamente. (Palmas! Muito bem! - registra a ata). Naturalmente, Sereno Chaise, seu líder, oficializará o requerimento, depois. Então a sessão durará até que passe a tempestade com a posse garantida e consumada de Jango.
— Estão inventando moda!, comenta um funcionário de passagem pelo "cafézinho", como é conhecido aquele espaço onde Gaudilio Scalabrin serve café para deputados, funcionários e visitantes.
Scalabrin indaga que moda é esta que estão inventando e o interlocutor não de se faz de rogado.
"Esta tal de sessão permanente... Agora não tem hora para terminar o plenário".
Scalabrin logo pensa nas toneladas de café que vai ter que providenciar para saciar a vontade do povaredo que sempre vem atrás do pretinho para abrir o apetite para o cigarro obrigatório. Scalabrin não poderia imaginar que ali, no andar térreo do Casarão da Duque, onde dividia o economato da Assembleia com a esposa Oliva Maria, iria permanecer em função durante aquele período que um dia chamariam de Movimento da Legalidade.
Natural de Vila Maria, então distrito de Caxias do Sul, Gaudilio Elino Scalabrin mourejava feito um gringo da roça que deixara para aventurar-se na cidade grande. Durante esta Legalidade, não por 12 dias contabilizados com a ida de João Goulart para Brasilia nem por 14 dias somados contando a posse do presidente em 7 de setembro mas por três longas semanas em que a 90ª sessão plenária foi permanente, o Parlamento funcionava da manhã à noite invadindo a madrugada com novas reuniões paralelas regadas a café preto. Muitas vezes, naqueles idos, o casal sequer ia em casa cuidar dos filhos pequenos, Marilene e Tadeu.
(Só depois de passada a tormenta, em 17 de setembro, Scalabrin desabafou em carta ao irmão, em letra torneada inimaginável para surgirem dos dedos de um acolonado intempestivo como ele: "Quanto aos movimentos revolucionários, só faltou acender o estopim. Foi feio, quase que me fui...")
- Temos um angú muito grande: o Jânio renunciou
Para o diretor de Anais e Documentos, Hélio Vasques da Silva, o caráter de permanência da sessão é interpretado de outra maneira, igualmente preocupante. Como organizar a lauta e farta papelada que há de vir da discurseira do plenário empolgado? Mal sabe ele que nos dias vindouros vai ter que se preocupar também com o filharedo que sairá do prédio onde mora a família na Rua da Praia, frente ao Hotel Majestic, e virá em bando para a Praça da Matriz. Virá liderando o piazedo o Edgar Vasques, 13 anos, que um dia será desenhista, cartunista afamado; o Oscar, ator que ficará conhecido pelo sobrenome materno, Simch; o José Antonio Silva, futuro escritor, jornalista e poeta, e o Eduardo, no porvir o artista plástico Dua.
Como sua mulher Belchis poderia conter a gurizada toda em doce cárcere doméstico, se trincheiras de sacos de areia e homens armados vão formando um cenário real muito melhor que o das matinês do cine Guarani? Hélio tem que se preocupar em registrar os fatos para história e transformar os anais em separata exclusiva, em testemunho inconteste dos acontecidos no Casarão da Duque.
Pércio França, um dos três secretários da bancada do PSD, e o que é mais afinado com o presidente da Casa, Helio Carlomagno, voltará a este exato momento, 50 anos depois, ainda ouvindo um soar telefônico. Natural de São Gabriel, onde fora prefeito Hélio Carlomagno (embora tenha nascido em Cruz Alta), Pércio ouve o som do telefone vermelho ecoar na sala do presidente da Assembleia com o tilintar rouco das urgências. O secretário olha imediatamente para o lado oposto, como que à espera da incorporação física do deputado que dirige o Parlamento. É inútil, o vão da porta permanece vazio. No quarto toque agitado, o jovem decide-se:
— Pronto, governador! Às ordens!
— Carlomagno?
— Não, governador, aqui é o secretário dele, o Pércio França.
— Pois me chama o homem que temos um angú muito grande: o Jânio renunciou!
O secretário apressa-se em encontrar Carlomagno e revelar, excitado, a razão do pedido de contato urgente do governador.
— Tu tem certeza? O presidente Jânio renunciou mesmo? - indaga Carlomagno colocando os óculos instintivamente como se o aparato ótico lhe ajudasse a ouvir melhor.
O outro secretário da bancada social democrática, o jovem Jair Soares, dentista que ingressou no serviço público pela Secretaria de Obras Públicas, vai findar o dia no Casarão com poucos correligionários da ala dissidente do PSD, que é majoritária e com a qual ele mais se identifica. Estavam com ele, se a memória recuada 50 anos não lhe engana, os deputados Helvio Jobim e Luciano Machado, além de França e o terceiro secretário a que a bancada de 26 deputados tinha direito, Paulo Gonçalves.
Entre pouco mais de uma centena de colegas no Casarão que eram pagos como os parlamentares, diretamente na tesouraria, com dinheiro vivo, o jovem Jair que um dia será governador do Estado como Brizola, já adivinha que o chefe do Executivo não terá oposição porque a causa que defende suprime inimigos declarados. Quem pode ser contra a defesa da Constituição? "Foi brilhante nisto, o Brizola, que postou-se ao lado da legalidade. Todo mundo pensava que era um homem fogoso e incendiário, entre outros apelidos depreciativos. Então ele impõe esta bandeira e desnorteia a oposição no Rio Grande. Faz com que a oposição se cale".
Empreitada de resistência declarada ao golpe
Promulgada, então, pela Assembleia Legislativa, a atitude decisiva para acalentar o cenário institucional do Estado com a adesão formal à causa da fidelidade à Constituição, coloca-se o Parlamento ao lado do Executivo na empreitada de resistência declarada ao golpe que se insinua. Agora, portanto, declaram-se irmanados Executivo e Legislativo no mesmo objetivo da defesa da democracia.
Carlomagno apodera-se da cópia com a carta renúncia de Jânio Quadros, capturada pelo serviço de rádio do Palácio Piratini, e lê com a grave entonação que o instante exige:
"Fui vencido pela reação e assim deixo o Governo. Nestes sete meses cumpri o meu dever. Tenho cumprido dia e noite. Trabalhando infatigavelmente, sem prevenções nem rancores. Mas baldaram-se os meus esforços para conduzir esta Nação pelo caminho de sua verdadeira emancipação política e econômica, o único que possibilitaria progresso efetivo a justiça social a que tem direito o seu generoso povo.
Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando denunciando a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos dirigidos inclusive no exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis se levantam contra mim e me infamam ou me intrigam até com a desculpa de colaboração. Se permanecesse, não manteria a consciência e a serenidade ora sagradas, indispensáveis ao exercício da nossa autoridade. Creio mesmo não manteria nem a própria paz pública.
Encerra, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente, para os. estudantes, para os operários, para a grande família do Pais esta página da minha vida e da vida nacional.
A mim não falta a coragem da renúncia. Saio com um agradecimento e um apelo, um agradecimento aos amigos que comigo lutaram e me sustentaram dentro e fora do governo e de forma especial às Forças Armadas, cuja conduta exemplar em todos os instantes e oportunidades não canso de proclamar.
Apelo à paz, ao congraçamento, a estima de cada um dos meus patrícios para todos, por tudo e para cada um. Somente assim seremos dignos deste País e do Mundo. Seremos dignos de nossa herança e da nossa predestinação cristã.
Retorno, agora, ao meu trabalho de advogado e professor. Trabalhemos todos. Há muitas formas de servir nossa Pátria.
Em 25 de agosto de 1961"
Povo sem Parlamento, é um povo escravo
Após a leitura, Carlomagno, exalta a "necessidade de manter esta Assembleia Legislativa em sessão permanente". E segue, com pompa e circunstãncia.
— O momento é de indisfarçável Importância e esta Casa, pela suas tradições e pelas tradições do povo rio-grandense, na sua legalidade, na defesa da Constituição, esta Casa não poderá cerrar suas portas enquanto não se desanuviar o panorama brasileiro. Neste instante, esperamos, portanto, os representantes do Povo, na vontade inabalável de mantermos tanto quanto possível o funcionamento do regime e a defesa da Constituição, poder retirar forças morais do seio do povo para que possamos assim defender o Poder Civil, defender a Constituição, defender a liberdade pública e garantir as franquias democráticas.
Explicativo, Carlomagno prossegue:
— É um episódio previsto pela Constituição, a renúncia do presidente. Acabou de assumir a Presidência da República, no impedimento do vice-presidente, o sr. Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. O momento é de cautelas, de zelo, de meditação e, acima de tudo, de desprendimento. O Rio Grande está unido, neste ponto comum, na defesa da Constituição, das liberdades e da democracia, Neste instante vou suspender a sessão. Apenas, suspendê- la, para que os srs. Deputados possam descansar das suas fadigas e possam voltar a cada momento e cada instante a esta Casa que permanecerá de portas abertas, no simbolismo, no desejo da nossa disposição de mantermos em funcionamento o Parlamento, porque um, povo sem Parlamento, é um povo escravo. (Palmas)
Está suspensa a sessão.
Não por muito tempo, entretanto. À noite, às 21h35, a sessão é reaberta novamente e estende-se, movimentada pela ansiedade ampliada pela falta de notícias concretas e pelo proporcional excesso de boatos.
— Le president du Brésil est renoncé aujourd hui !
Nesta noite, na cidade francesa de Besançon, na fronteira com a Suiça, o engenheiro gaúcho Roberto de Azevedo e Sousa, de 33 anos, demorou a perceber a dimensão da notícia que ouvia nas ondas sonoras de uma rádio francesa. Com autorização de viagem à Europa assinada pelo secretário estadual de Obras, João Caruso, e homologada pelo governador Brizola, Roberto imaginou que tivesse traduzido mal o francês radiofônico. Temia que seu parco conhecimento da lingua francesa estivesse pregando uma peça trágica. Mas a noticia insistiu repetida nas emissoras que capturava no dial do aparelho:
— Le president du Brésil est renoncé aujourd hui !
"Será que não confundiram Jânio com o governador do Rio, Carlos Lacerda?", torce Roberto.
No dia seguinte, ao procurar a confirmação com outros brasileiros que estavam na França, ouvirá
o comentário desolado do primeiro secretário do consulado do Brasil, Geraldo Holanda e Cavalcanti, que, como Jango na China fazia no Oriente, percorria a Europa pregando a abertura comercial de Jânio Quadros.
— Sim, Jânio renunciou. E jogamos fora sete meses de trabalho no exterior!
Pelos 50 anos seguintes, Roberto guardou uma cópia da reportagem da edição do France Soir do dia 29 de agosto de 1961 que, sob o titulo "Voici les six acteurs de la crise brésilienne", mostrava as fotografias de Jânio, Jango, Carlos Lacerda, Ranieri Mazzili, e os militares Odilio Denys e Marechal Lott, nomeado sem prenomes.
Na França, naqueles dias, ainda não conheciam Leonel Brizola.
Logo se improvisará a chamada Cadeia da Legalidade
Por volta das 23h30 (conforme os jornalistas que escreverão a história), o governador Leonel Brizola sai do Palácio, dá alguns passos na rua Duque de Caxias e logo chega ao Parlamento, sob os olhares ansiosos dos parlamentares presentes. Rejeita o caminho da escada de 26 degraus amadeirados e adentra no elevador que o carrega, engaiolado, até o primeiro andar. Segue direto para a sala do presidente da Casa Legislativa.
Carlomagno está cercado de colegas do PTB e de poucos deputados do PSD que o acompanham na dissidência interna que racha o partido, Moab Caldas e Arlindo Kunzler entre eles. Pércio não se preocupa em contar, mas imagina que se todos estiverem na sala somam 28 parlamentares. Todos mostram feições cerradas, olhares graves e compenetrados. A renúncia do presidente da República agora só exige do Parlamento bons tribunos, forjados nos embates verbais dos comícios de rua.
(Ninguém imagina, mas esta incursão de Brizola ao prédio da Assembleia será um dos dois únicos percursos externos dele desde o Palácio Piratini nos próximos 12 dias quando se entrincheirará na sede do governo colocando efervescência no porão abafado, de sala sem janelas, onde logo se improvisará uma rede de emissoras de rádios, a chamada Cadeia da Legalidade capitaneada pela rádio Guaíba. A outra saída se dará no sábado, dia 26, até o Parque de Exposições do Menino Deus, onde inaugurará a 28ª edição da Expointer ainda sem o caráter internacional dos dias de hoje).
Para os deputados reunidos na sala da presidência, Brizola rememora os acontecimentos do dia, desde a solenidade do Dia do Soldado, sob a chuvarada no Parque Farroupilha. Conta da desconfiança com os estranhos cochichos militares, da sua ida para o prédio da Caixa onde faz ligações e confirma a renúncia presidencial, conta da sua tentativa de falar com Jânio Quadros ilhado em um aeroporto em São Paulo, a suspeita fortalecida de que se prepara um golpe contra o cunhado que deve estar por Cingapura nesta sexta-feira e contra a Constituição, as instituições, a democracia.
Por fim, Brizola cutuca os brios parlamentares:
— Se há uma estrutura golpista em marcha no País, evidentemente ela não se dirige somente contra o senhor Jânio Quadros, mas também contra o vice-presidente, contra o Congresso, contra os governadores, contra as assembleias legislativas. E se isto tudo ocorrer não sei o que vai acontecer, mas, tudo que for preciso para defesa da legalidade, eu farei.
Ao grifar o termo legalidade - que aparece mencionado pela terceira vez no Casarão da Duque neste dia - Brizola batiza o movimento de resistência que todos ali, na sala da presidência do Parlamento, começam inadvertidamente a protagonizar.
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